Porto ao Vivo
A música ao vivo na cidade Invicta - Projecto Jornalístico UM
domingo, 24 de maio de 2009

Ricardo Vale, geógrafo

Ricardo Vale licenciou-se em Geografia, em 2005, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Fez Pós Graduação (2006) e Mestrado em Geografia Humana pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que concluiu em Janeiro de 2009

“O território é um elemento vital na definição da estética musical”


Estudou as relações existentes entre o território e a produção musical, para tese de Mestrado. O geógrafo considera que a música desempenha um papel fundamental na construção do que é a cidade do Porto.

De que trata a sua Tese de Mestrado?

A dissertação trata das ligações entre o território e a música. O fio condutor do trabalho foi perceber de que forma o território podia influenciar a produção musical. O território foi entendido a várias escalas, sendo o enfoque dado ao contexto urbano, nomeadamente o caso do Porto.

Que indícios o levaram a considerar esta como uma área a investigar dentro da Geografia?


Embora nunca tivesse pensado muito neste, como um tema sério de análise geográfica, uma conversa circunstancial de ‘café’ com um geógrafo ‘a sério’ (Professor Doutor Mário Vale) fez-me ver que podia ter ‘pernas para andar’. Apesar de ter partido de uma premissa um pouco empírica, rapidamente percebi que se tratava de um assunto intimamente relacionado com a Geografia. A posterior consulta bibliográfica comprovou isso mesmo. O território (e tudo o que lhe está associado) é um elemento vital na definição da estética musical.

Há características comuns existentes em todas as cidades que investigou para que a música se tivesse tornado uma parte significativa da identidade dessas cidades?

A resposta é não. Não há uma fórmula para que num determinado espaço surja uma nova estética ou linguagem musical. Há, sim, um conjunto de circunstâncias que podem contribuir para que isso aconteça, embora raramente essas circunstâncias ocorram de forma isolada.

No Porto das décadas de 80 e 90, o eixo imaginário Boavista-Foz, que refere na sua tese, e que incluiria também a zona da Ribeira, reunia essas condições?

O eixo Boavista-Foz funciona como algo imaginário que estabelece os pontos de ligação a alguns dos factores que, eventualmente, terão levado a que tenha havido no Porto ‘alguma coisa’ durante as duas últimas décadas do século XX no panorama musical português. Tratava-se, essencialmente, de um eixo de movida nocturna e de poder financeiro. São dois elementos importantes para compreender a música do Porto, sobretudo da década de 80.

E que particularidades apresentava essa zona da cidade?

Havia uma aliança entre diversos mundos ou pólos criativos (moda, design, pintura e música): por um lado, espaços de diversão nocturna inovadores e potenciadores de novos sons e, por outro lado, correspondia também a um eixo onde se concentrava alguma da elite endinheirada da cidade, numa altura em que a produção musical não estava tão democratizada como está hoje.

A música ao vivo era uma das componentes dos espaços que aí existiam?


A música ao vivo foi importantíssima, sobretudo em dois espaços: o Infante Sagres e o Meia-Cave. Assumiram-se como espaços onde o que era novo e inovador, sobretudo no segundo caso, passava por lá.

“Os centros agregadores (do Porto) poderão não ter desaparecido, mas têm vindo a transformar-se”

O que é que, desse tempo, é História da cidade, e o que é que continua a ser o Porto vivido?

Algumas coisas terão ficado. O pulsar da cidade é, naturalmente, diferente. A mudança do paradigma da indústria musical e tecnológica veio transformar tudo, com reflexos evidentes no Porto musical. O Porto de 80 já não existe. Nem o de 90. No entanto, há referências, sobretudo estéticas, que se irão manter. Por exemplo, dificilmente sairão projectos do Porto que sejam pouco sólidos. Se forem pouco sólidos, então provavelmente não sairão da respectiva rua ou da garagem. Noutras cidades poderá não ser assim.

Pode dizer-se que, a partir de meados de 90, se iniciou uma dispersão na cidade, que levou ao desaparecimento de um centro que desempenhasse o papel que o eixo Boavista-Foz desempenhou durante as décadas de 80 e 90?

Os centros agregadores poderão não ter desaparecido, mas têm vindo no entanto a transformar-se. O centro que foi a Buondi Café ou o Meia-Cave, nas décadas de 80 e 90, se calhar hoje está no Plano B, nas Galerias de Paris ou na Casa da Música. Não sei se a dimensão e a temporalidade deste fenómeno chegará para deixar marca, mas parece-me que sim.

Existem diferenças entre este novo ‘centro’ e o antigo eixo Boavista-Foz?

Parece-me que a grande diferença está na estruturação da ‘coisa’. Os espaços que têm surgido não têm aparecido de forma isolada, mas sim ligados entre si. Contudo, parece-me que não é o resultado de uma política de cidade activa e pensada pelos decisores camarários. Trata-se, na esmagadora maioria, de iniciativas privadas de alguns dos actores da década de 80 e/ou 90. Como alguns dos entrevistados da minha dissertação afirmaram: “trata-se dos mesmos resistentes do costume”. Isto não é obrigatoriamente mau. É o que é…

Que relevância tem este novo centro cultural para a futura música produzida na cidade?

O meu objecto de estudo não foi prospectivo, por isso tenho alguma dificuldade em poder afirmar isso. Parece-me que estão reunidas algumas condições para que possa surgir algo de sólido e para que esse espaço da cidade desempenhe um papel fulcral. Estou suficientemente atento ao panorama musical e, até agora, não me apercebi de resultados palpáveis. Mas posso estar enganado ou ainda pode estar para a acontecer. É preciso tempo…

Considera que o Porto é uma cidade incompleta, se não for capaz de produzir música que se torne parte da banda sonora de Portugal, como foi capaz de o fazer no passado (GNR, Trabalhadores do Comércio, Clã, Ornatos Violeta, Pedro Abrunhosa)?

Claro que sim. É óbvio que a produção cultural faz parte da cidade e o Porto é o Porto não só pelos seus ‘bonitos olhos’… É pelos ‘bonitos olhos’, pelo Bolhão, pelo Siza, por Serralves, pela Casa da Música, por causa do falar alto e (supostamente) mal, pelo Abrunhosa, pelos Clã e pelos Ornatos… É um somatório de coisas que constrói a cidade. E, nesse somatório, a cultura e a música em particular desempenham um papel vital.

Dada a forte ligação existente entre o Porto e a música, pode dizer-se que ao ouvirmos música produzida no Porto estamos, de alguma forma, a pisar território portuense?

Eu acredito que nalguns casos sim, mas é preciso relativizar. Há músicas que ‘cheiram’ ao lugar. Eu oiço ZZ Top e penso imediatamente no pó e no calor dos desertos do sul dos EUA. Oiço Fun Lovin Criminals e só consigo imaginar Nova Iorque de noite. Ou oiço os Doors e penso em Los Angeles. Há alguma música do Porto que respira Porto por todos os lados, mas aqui entramos no domínio sensorial e aí, eu não consigo fazer ciência…



* entrevista efectuada por correspondência electrónica

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